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sábado, 25 de junho de 2011
Patrimônio público
Revista da Cultura
Durante séculos, debulharam-se em montanhas de papéis amontoados, dentro de porões, ou esquecidas em acervos, composições de grande sofisticação e qualidade cultural, produzidas por filhos ou netos de escravos, entre o século 16, passando pelo ciclo do ouro. O material desta época de grande apogeu das manifestações artísticas do Brasil Colônia esteve esquecido, escondido, adormecido e quase carcomido por um longo tempo, em que apenas lhe prestou homenagens com o silêncio, mas, no final dos anos 1940, este viria a ser quebrado pelo professor e musicólogo Curt Lange e, posteriormente, pelo maestro Marcelo Antunes Martins.
Nos séculos 16 e 17, Bahia, Maranhão, Pará, Pernambuco, São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro tinham orquestras formadas exclusivamente por mulatos ou negros. Essas confrarias produziam a mais nobre forma de atração cultural e artística da época. A corte portuguesa, uma das mais ricas da Europa em termos de música, segundo o maestro Júlio Medaglia, cuja biblioteca musical era a segunda maior depois da do Vaticano, trazia para a Colônia toneladas e mais toneladas de partituras que eram minuciosamente estudadas e analisadas por músicos mulatos ou negros. Uma das particularidades sobre o tema, contadas pelo maestro, foi o caso de um quarteto de Haydn: “Estive uma vez com o professor Curt Lange, lá em Minas, e encontramos um quarteto de cordas de Haydn que tinha sido copiado por João José Gomes, se não me engano. Nós achamos o nome desse tal de João José Gomes lá numa confraria de mulatos em Minas Gerais, portanto, brasileiro. O nome era brasileiro e ele que fizera a cópia. Essa partitura estava toda cheia de pingos de velas, e a borda, arredonda de tanto virar a página. Ou seja, aquele quarteto foi tocado de forma exaustiva. E os caras estavam participando realmente do que estava acontecendo. Aí, nós vimos a data da cópia, e era de 14 anos antes de Haydn morrer na Áustria. Significa que o homem estava vivo, produzindo o que havia de mais recente e o quarteto já estava sendo tocado aqui”.
ASSIMILAÇÃO
Os atualmente conhecidos como mestres mulatos eram, na época, filhos ou netos de escravos, que muitas vezes recebiam do pai branco o nome e a alforria, ou eram contratados pela corte para exercer a função de músicos. A absorção do conhecimento desses homens era feita através de análise e assimilação do material trazido da corte portuguesa para a Colônia; e, desse estudo, surgiram inúmeras composições espalhadas por todo o Brasil. Não se tem ideia do volume de obras produzidas desde o período colonial e, por outro lado, nosso país é o mais atrasado na organização e na recuperação de acervos musicais, conforme o maestro Marcelo Antunes Martins, que pesquisou o assunto durante 11 anos. Muitos desses compositores foram mestres de capelas, e muitas das obras recuperadas são obras sacras. Mas também compõem o acervo organizado e resgatado inúmeras produções que não são vinculadas ao âmbito religioso.
Não é que a época da escravatura no Brasil tenha sido algo brando, já que impossível pensar nos dois termos em um só contexto, mas o mestre em História André Honor lembra, por exemplo, como o castigo “era algo institucionalizado, onde só havia contestações quando era exacerbado”. A escravidão não era vista, nem pelos escravos, como algo errado. Ela existia. Lógico que, quando se é escravo, deseja-se não ser um, porém isso não significa necessariamente a condenação do sistema escravista. Era comum escravos possuírem escravos, tanto os libertos, quanto aqueles que ainda não haviam sido alforriados. Fazia parte do sistema o que comumente é chamado de “brechas”. Escravos possuíam um dia de folga, produziam hortas, vendiam esses produtos e acumulavam pecúlio, geralmente utilizado para comprar sua liberdade. O mulatismo é algo muito bem trabalhado por Gilberto Freyre, como os senhores se utilizavam das negras para fins sexuais, gerando um número grande de mulatos, que muitas vezes eram reconhecidos à época do nascimento ou em testamento. Salvo raras exceções, não existiu uma unidade de negros no Brasil lutando contra a escravidão. Era comum haver conflitos internos devido às diferenças étnicas entre os negros de uma mesma fazenda, algumas etnias inimigas históricas na África.
A primeira descoberta começou no final dos anos 1940, quando Curt Lange veio da Alemanha para a América Latina, devido à guerra; e, ao visitar o Brasil, deparou com a arte barroco-mineira. Para ele, era quase impossível haver artes plásticas ou esculturas desconhecidas, mas não se sabia de nada relacionado à música gerada nessa época. A partir dali, ele encontrou pistas e começou a descoberta do paradeiro de inúmeras partituras em porões de casas particulares no interior de Minas Gerais. A pesquisa, de anos, culminou no concerto regido pelo maestro Júlio Medaglia, em 1959, no Teatro Municipal de São Paulo, onde as partituras também foram expostas em estruturas blindadas. Passaram também a ser envolvidas em uma problemática sobre sua veracidade, e começou o protesto de requerimento dessas obras por vários musicólogos. Ali, o tema veio ao público pela primeira vez e se tomou conhecimento da música produzida pelos mestres mulatos.
Em 1990, em um dos encontros da Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros (CNBB), o maestro Marcelo Martins conheceu o arcebispo de Minas Gerais, Dom Luciano Mendes. A sede da arquidiocese ficava em Mariana, onde também se encontra o maior acervo de música colonial brasileira, devido ao ciclo do ouro. Ali se deu a reunião de compositores geniais, facilitada pelo movimento de dinheiro que passava pela região, desde Diamantina até Paraty, no Rio de Janeiro – uma ligação de cidades riquíssimas. Nesse encontro, Dom Luciano assistiu a uma orquestra de jovens, incluindo o maestro, apresentando a Cantata 140, de Bach. Interessado por esses jovens, disse que tinha um acervo que estava fechado para visitação na época e convidou o maestro para conhecê-lo. Então, este iniciou a pesquisa que se estenderia por mais de uma década, percorrendo Pernambuco, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo. Além do acervo reunido – por volta de 80 partituras –, Marcelo realizou o trabalho de restauração, bem como a criação da Sinfonieta dos Devotos de Nossa Senhora dos Prazeres, cujo site (www.sinfonieta.com.br) expõe, além das gravações de três CDs, também as partituras abertas gratuitamente para o público. O intuito do projeto, segundo o maestro Martins, é trazer para o público um panorama histórico da música brasileira, das mais antigas partituras a Pixinguinha. O CD Os mestres mulatos, por exemplo, tem a execução de uma partitura datada de 1759.
Questionado sobre a sequência da pesquisa, Marcelo diz que deseja continuá-la, mas depara com os entraves da política cultural que, segundo ele, não se empenha na preservação do patrimônio histórico. E enfrenta ainda “a posição protecionista da igreja, insistindo em manter fechados os seus acervos”, e “a falta de união entre alguns musicólogos, que tomam posse do que viria a ser um patrimônio público”.
Postado por
Telma Cavalcanti
às
06:46
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Música
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