segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Literatura

50 anos a mil

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Eu sou suspeito para falar sobre essa criatura conhecida como Lobão. Além de ter tido a honra de entrevistá-lo há alguns anos, acompanho sua carreira desde a época do Vímana, quando integrava a cozinha do grupo comandado pelos cabeludos Lulu Santos e Ritchie. Gostava (e gosto) tanto do cara que fiquei puto na época do lançamento do primeiro LP da Blitz porque ele não aparecia na capa do disco, junto com a trupe de Evandro Mesquita, apesar de ter tocado em todas as faixas (pensando bem, o mesmo aconteceu com Paulo Pagni no trabalho de estréia do RPM). Quando lançou Cena de Cinema, ouvi a bolacha até furar (literalmente) e tive que comprar uma nova cópia. Com os Ronaldos, ficou na minha cabeça o célebre trecho da faixa Abalado que resume a vida dele (e um pouco da minha, por tabela): A loucura é tão clara quanto o escuro da lucidez.
 
Por ter vivido intensamente a década de 80, a experiência de ler 50 Anos a Mil (Nova Fronteira, 590 páginas), biografia escrita a quatro mãos com o jornalista Claudio Tognolli, é deliciosamente gratificante. Estão lá, dentre várias histórias, os detalhes de uma infância e adolescência que ninguém imaginaria ser da figura mais polêmica do rock brasileiro, que se mantém viva e ativa, em tempos de Restarts e Luans Santanas.

A leitura flui como uma conversa entre amigos num entardecer de domingo, tomando um chopinho e comendo queijo de coalha. Lobão conta causos de como iniciou sua (quase forçada) carreira musical e sua (atrapalhada) vida sexual, fala sem vergonha sobre o fracasso na escola e com alegria sobre as amizades que duram até hoje, dramas familiares, peraltices de um guri hiperativo e dificuldades de um adolescente que saiu de casa para viver de música, lembrando um pouco o lendário episódio da vida de um garoto de Liverpool e sua tia, quando um tal de John Lennon empunhou seu surrado violão e decretou que ganharia a vida com ele.
 
 
Não são poucos os momentos engraçados ou emocionantes. Impossível não rir quando o autor de Me Chama lembra um fato tragicômico em defecou nas calças por causa de sua extrema timidez ou não se emocionar no primeiro encontro com seu mentor e amigo Julio Barroso, líder da Gang 90 que também partiu muito cedo e foi homenageado em seu velório – de forma inusitada- pela dupla de aspiradores Lobão e Cazuza.

Claro que a vida bandida não poderia ficar de fora. A fase em que se tornou – praticamente – um criminoso não é escondida ou atenuada. O ingênuo xurupito (como era chamado quando criança) viveu mais cinco anos entre os traficantes dos morros cariocas. Foi preso, escapou da morte em fogo cruzado, chegou a dar tiro e roubar. Barra pesadíssima. Não menos leve foi o relato do suicídio da própria mãe, que o autor relata no livro como uma forma de exorcismo da própria culpa (não sei se viajei nessa). Afinal de contas, a mãe se matou por causa dele (pelo menos é assim que o episódio é contado). Mais adiante, o extremo ato de sua genitora foi copiado pelo primogênito. Ainda bem que sem êxito.
 
A capa é marcante. Mostra o rosto de um lobo marcado pelo tempo, com a barba vasta e grisalha, como a de um mendigo que pede esmola nos semáforos e que todos preferem ignorar. Por outro lado, pode ser visto como um rosto que diz, sem emitir uma palavra:  comi o pão que o diabo amassou, tomei muito no rabo mas sobrevivi e venci, seus bostas!
 
A importância deste livro, fora o fato de fazer justiça a um artista da grandiosidade de Lobão, é ser uma biografia escrita pelo próprio biografado. Ou seja, não precisou ter morrido para ter sua história resgatada e apresentada ao grande público. Quem sabe se Wilson Simonal tivesse feito o mesmo, a história não teria sido outra?
 
Aliás, guardada às devidas proporções, Lobão é o Simonal da minha geração. O cara que fez muito sucesso, caiu no ostracismo, foi abandonado pelos amigos e pela indústria que faturou muito em cima de sua obra. Mas, ao contrário do Simona, Lobão fez por merecer algumas coisas mas não se deu por vencido e foi à luta. Mesmo fodido e mal pago, não se calou diante do que não gostava ou achava errado. Fundou sua própria gravadora e provou que a numeração dos discos é uma forma que o artista tem de receber o que lhe é de direito. Foi editor de revista, ajudou bandas novas, viveu um inferno astral e ressuscitou em meio da geração download e I Pod, ao gravar um acústico (formato que tem o mesmo efeito do sangue fresco derramado sobre as cinzas de um vampiro) e apresentar um programa na MTV que serve de púlpito para o Pastor João (sim, o nome dele é João Luiz) e sua Igreja Invisível (desculpem Marceleza e Rauzito, não resisti) preencherem as cabecinhas ocas da maioria dos telespectadores da emissora com alguma sabedoria lupina, muito necessária em tempos que o cérebro da rapaziada colorida está quase atrofiado. Na verdade, o nome do programa não poderia ser mais adequado: Lobotomia.
 
Por tudo isso e muito mais, 50 Anos a Mil é um item obrigatório para entender a importância do Xurupito na música pop brasileira e conhecer o homem que abalou as estruturas de uma indústria poderosa e ditadora, que espreme o que pode do artista e o descarta já em forma de bagaço, exatamente como uma máquina de fazer garapa.

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