Bastidores da criação literária de Orhan Pamuk
por Kelly de Souza | Literatura, livros“Para ser feliz, preciso da minha dose diária de literatura. E nisso não sou diferente do doente que precisa tomar uma colher de remédio por dia. (…) Para mim, literatura é remédio. Como os medicamentos que as outras pessoas tomam de colher ou em injeções, a minha dose diária de literatura — a minha droga cotidiana, se preferirem — precisa atender a certos padrões”.
Em O autor implícito, texto que abre Outras Cores, Orhan Pamuk não deixa dúvida de que o livro – lançado em outubro no Brasil – é uma mistura das ideias e fragmentos de vida que ainda não encontraram lugar em seus romances. Usar da história particular para refletir e analisar a vida pública não é novidade para o escritor turco. Em Istambul – parte autobiografia, parte ensaio, parte elegia – ele resgatou a história afetiva de sua cidade natal, revelando personagens, ruas, becos, e os acontecimentos que definiram sua vida. O resultado dessa exposição nem sempre é favorável. “Istambul destruiu minhas relações com a minha mãe”, revelou em entrevista à Paris Review.
Em Outras Cores ele volta às questões pessoais e da cidade reunindo ficção, relatos jornalísticos, discursos e entrevistas, mas, sobretudo, os bastidores do seu laboratório criativo. Em Viver e Preocupar-se, primeiro capítulo do livro, e o mais pessoal deles, Pamuk fala desde sua “relação curativa” com a literatura, passando pela relação com o pai, a inspiração em tardes de primavera, o medo de terremotos, a filha, seus relógios de pulso, e como deixou de fumar. Tudo, claro, tendo como pano de fundo o ato de escrever. “Só porque quero falar de escrever, e especialmente de escrever romances, como de um hábito”. No capítulo Meus livros são a minha vida retrata sua produção literária e métodos para a escrita de Neve, Meu nome é Vermelho, O livro negro, etc. Obcecado pela exatidão na ambientação de seus enredos, o escritor (Nobel de Literatura em 2006) revisita os lugares que seus personagens transitam nos romances.
Além da escrita, outro “hábito” vital de Pamuk é a leitura. No capítulo Livros e Leituras, Pamuk vai além da descrição dos prazeres (e desprazeres) da leitura e analisa grandes autores como Victor Hugo, Albert Camus, Thomas Bernhard, Vargas Llosa, Stendhal, Borges, entre outros, e obras como Tristam ShandyMemórias do Subsolo e Os Irmãos Karamazov (Dostoiévski), Ada e Lolita (Nabokov). “O progresso de um escritor depende, em grande parte, dos bons livros que leu. Mas ler bem não é passar os olhos e a mente lenta e cuidadosamente pelo texto; é mergulhar na alma do livro. É por isso que nos apaixonamos por poucos livros durante a vida”. Sobre Versos Satânicos (de Salman Rushdie), Orhan Pamuk fala da liberdade do escritor e reafirma seu compromisso com a liberdade de expressão. (Sterne),
E é justamente sobre liberdade (ou a falta dela) que o autor trata no capítulo Política, Europa, e Outros problemas de sermos quem somos, onde explora sua forma de ver a política e a sociedade, seu “engajamento” e os problemas gerados por ele. Pamuk foi processado pelo governo de seu país acusado de “denegrir a identidade turca”, depois que falou sobre o massacre de armênios (promovido pela Turquia no início do século XX) a um jornal suíço. Questões como identidade e o choque de civilizações entre Oriente e Ocidente são assuntos recorrentes no livro (e nos romances do escritor).
O mosaico textual construído em Outras Cores (leia trecho do livro aqui) vale para aqueles que já leram Pamuk, mas, também para aqueles que nunca leram o escritor turco. É uma chance de conhecer a personalidade literária de uma das vozes mais originais e controversas da literatura contemporânea.
.
é jornalista colaboradora da Revista da Cultura e Blog da Cultura. Compulsiva por literatura, chocolate e escrita - não necessariamente nessa ordem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário